Sinopse
“Acredita-se que a poesia é uma forma privilegiada de acesso a uma memória primeira da humanidade, ao seu inconsciente colectivo. É uma obra que mergulha as suas raízes naquilo que de mais profundo existe em cada homem: o medo ancestral, os espectros da memória, os terrores infantis. Neste sentido, os poemas de Nuno Júdice têm uma dimensão antropológica, tendo consciência de que cada texto é uma reescrita de um mito originário e fundador que é actualizado. Num primeiro momento, privilegia-se aquilo a que Gilbert Durand chamou o regime nocturno da imagem: o regime feminino da descida e da fusão, corporizado no mito de Ofélia ou de Eurídice ou na presença obsessiva das águas lustrais como o charco ou o poço. Mais tarde, convivendo com o primeiro, que nunca é abandonado, ensaia-se o regime diurno da separação, simbolizado pela presença recorrente da ave que marca a dimensão solar da ascensão. O conflito entre estes dois regimes imaginários resolve-se na poesia dos anos noventa que inscreve um reflexo do seu próprio percurso: a descida é concebida como um caminho que precede a libertação metaforizada pela materialização do poema.
Em segundo lugar, a poesia de Nuno Júdice tem uma dimensão filosófica e metafísica. A escrita é concebida como repetição de um ritual antigo, tentativa de acesso a uma totalidade primordial, consciência fragmentária de uma unidade perdida. Sem nunca dar respostas definitivas, a sua obra interroga o mistério da morte, o sentido da vida, o enigma do amor, a ausência irremediável de Deus. Tem consciência de que a poesia é a última forma do sagrado numa sociedade profana, apesar de não ser uma forma totalizante de conhecimento. Sabe que o poeta é aquele que tem o dom de comparar e de criar analogias, projectando uma luz precária sobre uma realidade opaca.
Finalmente, a obra de Nuno Júdice consiste numa interrogação atenta do enigma da escrita, podendo ser lida como uma extensa arte poética do nosso tempo. Dialogou com textos de todas as épocas, pertencentes a diferentes escolas e a variadas línguas. Recuperou os mitos da literatura greco-latina, deixou-se seduzir pelo imaginário medieval, interpelou o Romantismo e o Simbolismo, teve em conta as rupturas da Modernidade. É uma poesia cosmopolita e europeia que absorveu e transformou a literatura portuguesa, experiência pensada sobre as potencialidades da língua nacional. A sua dimensão teórica convive com uma experiência lúdica; interpelar os grandes escritores do passado é saber reescrevê-los, criando repetições e diferenças, mantendo um fascínio que não anula a distância ou a capacidade de subversão.” in Prefácio por Teresa Sousa de Almeida